
Com dança, música, audiovisual e muitas risadas, duas bichas pretas encenam o fim da humanidade. Em 2040, no início da Era pós-humana, a peça provoca: como está o Complexo da Maré? Como a favela pode ajudar a reconstruir o mundo?
A peça Pactos para Reflorestar a Terra, em cartaz no Teatro SESC Copacabana até o dia 10 de agosto, começa com uma atmosfera de erotismo sutil e olhares intensos trocados com a plateia. Aos poucos, o espetáculo se torna um turbilhão de sensações: trilha sonora envolvente, crítica afiada e a performance arrebatadora de Wallace Lino e Paulo Victor Lino, as irmãs Lino, que se autodenominam “as pragas” ou, como preferem, “as praguinhas”.
“Não é sobre plantar uma árvore, é sobre como plantar amor e também sobre o que não plantar… Queríamos criar uma peça que transbordasse alegria, nada de tristeza.” — Desirée Santos, codiretor
Em 2040, na Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, o mundo enfrenta colapsos causados pelas intervenções humanas, gerando enchentes, desmatamento, e eventos climáticos extremos, desencadeando o fim da humanidade. No entanto, no Morro do Timbau, as irmãs Lino, negras e LGBTQIAPN+, seguem resistindo. Acostumadas a lutar para existir, elas agora se perguntam: como reconstruir e reflorestar o mundo a partir da afetividade, da irmandade e das memórias ancestrais de amor familiar, que as sustentaram durante a extinção da humanidade.
Nascidos no nordeste brasileiro e criados na Maré, os artistas teatralizam no palco de suas próprias existências: dois corpos desviantes, que se colocam como parte do planeta e não acima dele. Com cerveja e cadeiras de praia sobre a laje, Paulo Victor e Wallace vivem em um cenário que alterna reflexão e destruição para culminar na reinvenção do mundo a partir da favela. Nesse futuro pós-humano que imaginam, apesar da humanidade já ter acabado, a Terra continua viva e com a possibilidade de reinvenção e, portanto, de novas formas de viver.

Eles dançam, brigam, riem, se provocam, morrem e renascem. Cada gesto é em combate à lógica colonial, à normatividade, à violência, que insistem em apagar corpos como os deles. A linguagem da peça é tão plural quanto suas emoções. Entre português, espanhol, francês e uma língua inventada (ensinada ali mesmo ao público, na hora), a comunicação vira ato coletivo, com a participação ativa da plateia.

O riso vem fácil com piadas sobre signos ou vício no Grindr (aplicativo gay de relacionamentos), mas logo dá lugar à emoção em cenas que as irmãs Lino evocam as mulheres que os formaram: a mãe crente, as primas, a tia “indecente” do Parque União—assim vista pelos vizinhos por gostar de beber—, figuras centrais que garantiram à dupla afeto e liberdade desde cedo. São cenas de alta carga emocional. Os próprios atores assumem ter dificuldade em representar em alguns momentos de suas vidas. No entanto, afirmam que, para a dramatização de suas trajetórias neste plano distópico e afrofuturista da Maré, a performance destas ocasiões difíceis é fundamental.
Entre gargalhadas, vestimentas chamativas e uma forte interação com o público, o espetáculo desenvolve temas como a negligência diante das pautas indígenas e a falta da conexão humana com a Terra, tratada apenas como um recurso a ser explorado e envenenado. E convida o público, a partir de uma perspectiva LGBTQIAPN+ de favela, a pensar nessa nova construção, a imaginar futuros.

Ao final, é difícil sair sem vontade de buscar nomes, histórias e memórias que já reflorestavam amor muito antes do colapso da humanidade, figuras que se posicionaram no combate à homofobia e às violações de direitos humanos.
Na peça, Paulo Victor em determinado momento dá vida a João Francisco dos Santos, malandro temido e homossexual assumido, que se tornou um ícone LGBT+ no século XX. Figura lendária da boemia carioca, Madame Satã, como era conhecido, brilhou nos palcos do Centro do Rio e desafiou, com ousadia, os padrões cisheteronormativos.

“Não é sobre o que falta, é sobre o que se tem”, enfatiza Wallace ao incentivar a performance de Paulo Victor como Madame Satã. E, ao final da homenagem, completa de forma poética: “Madame Satã precisou soprar para que pudéssemos ventar”.
“É uma peça poderosa, que vêm de um lugar que as pessoas costumam desacreditar, mas têm muito a entregar, com vídeos, presença corporal e falas, que passaram a mensagem de forma leve.” — Kevin Santos, 27, espectador da peça
Pactos para Reflorestar a Terra está em cartaz no Teatro SESC Copacabana, de quinta a domingo, às 19h, até o dia 10 de agosto. Há lista amiga para pessoas trans, o que garante gratuidade na peça para esse público. Para obter isenção do ingresso, pessoas trans devem entrar em contato com Entidade Maré pelas redes sociais. Outros espectadores podem comprar ingressos diretamente na bilheteria do teatro por R$30 a inteira, R$15 a meia e R$10 para associados do SESC.
A obra é fruto de três anos de pesquisa pelos irmãos Wallace e Paulo Victor Lino, realizada pela Entidade Maré e sob direção de Desirée Santos e Renato Linhares.
Sobre a autora: Karen Fontoura é estudante de jornalismo da UFRJ, moradora da Rocinha e repórter do Jornal Fala Roça, onde coordena a comunicação institucional e de projetos da organização. Ela atua com produção audiovisual, reportagens e divulgação de iniciativas comunitárias.
